A psicologia clínica não é uma prática cultural simples. Por um lado, ela se apresenta para o grande público como uma espécie de “terra de ninguém” veiculando um relativismo que não permite critérios nem fronteiras para além do indivíduo: “todas as abordagens levam ao mesmo lugar”, “o que funciona para um não funciona para o outro”, “eu uso um pouco de cada coisa”. Ditos frequentes pronunciados por profissionais e gurus que sinalizam para esta mentalidade.
Por outro, a psicologia clínica é apresentada como uma ciência de verniz positivista, que tem nas evidências uma espécie de guia absoluto que reduz qualquer singularidade à um binômio diagnóstico-intervenção. “Se existem evidências, é boa clínica, se não, é perfumaria”. Para este grupo, a Bíblia é o DSM, a DIV 12 da APA um messias. Nesete discurso, para cada problema humano preexiste um tratamento já definido e pesquisado (e nada mais pode ser dito, a não ser que novas evidências se revelem)
Os dois polos estão essencialmente errados. O primeiro ignora completamente a potência e os avanços de uma prática que pode ser descrita em linguagem científica, pesquisada, avaliada e socializada. Se não temos critérios racionais para avaliar uma prática clínica, não há avanço nas questões relativas ao sofrimento humano (em geral), e não temos sequer meios de nos proteger contra práticas ineficazes perpetuadas por charlatões e ignorantes.
A segunda mentalidade reforça uma visão deformada da própria ciência. A ciência é uma prática coletiva, culturalmente situada, atravessada por escolhas e vieses humanos e inapta para definições normativas.
Precisamos recusar ambas visões e afirmar a complexidade da prática clínica. Ela envolve evidências e deliberação, diagnósticos e avaliações contextuais, dados empíricos e espanto.